quarta-feira, 23 de junho de 2010

Representações da história de Moçambique por parte de estudantes universitários de Maputo

Num contexto de democratização do ensino e de proliferação de instituições universitárias, muitos jovens moçambicanos desenvolvem uma cultura mais participativa e informada relativamente às questões sócio-históricas do país. A partir da análise de 180 inquéritos por questionário aplicados a estudantes do ensino superior em Maputo, bem como de um grupo de discussão que envolveu estudantes de uma universidade privada na capital do país, este texto tem como objectivo analisar as representações da história de Moçambique por parte desses actores sociais. Apresenta-se um breve excerto da conclusão:

Ao longo do grupo de discussão constatou-se a existência de uma representação predominantemente negativa do passado colonial, associada sobretudo à resistência dos africanos à presença estrangeira ou à exploração da mão-de-obra africana e dos recursos económicos de Moçambique. Os aspectos positivos associados ao período colonial relacionaram-se sobretudo com questões sócio-económicas – como a construção de infra-estruturas sócio-económicas ou de sistemas de saúde e de educação – e foram normalmente referidos não tanto (ou não só) como um elogio do passado, mas como uma crítica ao presente. De qualquer das formas, qualquer conclusão sobre estes dados deverá ter em consideração um conjunto de três aspectos: o manifesto desinteresse dos alunos pela história de Moçambique, a atitude crítica evidenciada em relação à historiografia, neste caso a moçambicana e, por fim, as características da amostra em análise.

Ainda que uma aluna tenha destacado que muitos moçambicanos “gostam de história, estudam história e até formam-se em história” e que inclusivamente “tem universidades que formam agora professores em história”, a verdade é que a maioria dos estudantes que participaram no grupo de discussão revelaram existir um forte desconhecimento por parte dos mais jovens em relação à história de Moçambique. Esse desconhecimento é explicado pelas carências que se evidenciam em Moçambique ao nível do ensino da história, sobretudo nas escolas públicas, e pelo desinteresse dos mais jovens relativamente a assuntos do passado:

- “Para nós, aquilo é uma época que já tinha acontecido. A história mudou. Fica para os mais velhos. Eu sei, tinha que saber as datas e essas coisas, porque era uma coisa que estudava na escola. Mas depois, eu estava nem aí. A história já passou. Já aconteceu [risos]. Vamos ver o que está a acontecer agora” (aluna de 21 anos);
- “Porque a gente estuda exactamente isso. Isso eu diria porquê? Talvez seria falta de atenção. Porque mesmo agora ela disse, ali é mais para a gente estudarmos. O que nos preocupa é que não tem nada a ver. Aquilo é uma história que aconteceu. Não temos mesmo nada a ver. Quando que…” (aluna de 22 anos);
- “Eu acho que é falta de interesse… dos jovens. A história… quando nós aprendemos a história, não é? Começámos a aprender no ensino secundário. Posso apostar que o que a gente aprendeu, da história, há uns que aprenderam mais que outros. Por exemplo, as escolas privadas têm mais atenção do que as escolas do Estado. Eu estudei numa escola do Estado… e havia muito professores lá que tinham falta de atenção. Eles… pouco falam, acerca da história. Não têm muito interesse… em dar as aulas como deviam dar, se for a ver, a maneira como dá na escola do Estado e a maneira como dá na escola privada é diferente” (aluna de 22 anos).

Estes testemunhos, de aparente vazio informativo, contêm um significado sociológico que importa analisar. Os problemas que assolam os jovens são hoje diferentes. Nas décadas de 1970 e 1980, as preocupações centrais do projecto do partido Frelimo, que terá de início envolvido as populações, relacionavam-se com o desmantelamento das estruturas de poder colonial, com a luta contra o apartheid e com a criação de melhores condições de vida para todos os moçambicanos. Se a independência política está garantida, o país enfrenta hoje novos problemas, relacionados essencialmente com os fenómenos de pobreza e de agravamento das desigualdades sociais. Confrontados com uma sociedade mais orientada para o materialismo e para o lazer, muitos jovens enfrentam hoje novos problemas, relacionados com o emprego, com a habitação, com o transporte ou com o consumo em geral. A proximidade física em relação a focos de riqueza e de consumo e a expectativa de acesso estimula, nas novas gerações, outros valores e necessidades. Trinta e cinco anos após a independência de Moçambique estes entrevistados enfrentam novos desafios, como a inserção e o aumento da competição no mercado de trabalho e de exigências escolares e profissionais. Por outro lado, estes jovens nasceram vários anos após a independência de Moçambique, pelo que não foram contemporâneos do regime colonial. Quando esta geração atingiu a adolescência, o regime monopartidário, envolvido em ideais marxistas-leninistas, tinha dado lugar a um outro, mais democrático e tolerante, relativamente aos costumes e aos comportamentos (políticos) dos cidadãos. Estes jovens estão, por isso, emocionalmente menos envolvidos com a história de Moçambique . A falta de conhecimentos de história e a sua desvalorização não significa necessariamente futilidade ou alienação , mas antes uma escolha pragmática e racional, estabelecida por novos actores sociais, num novo contexto. Para esta geração a independência constitui um dado adquirido. O mais importante prende-se com os problemas do presente e com as oportunidades que este lhes reserva.

Em segundo lugar, se como foi demonstrado a historiografia de Moçambique condiciona as atitudes dos mais jovens relativamente à história do seu país, um facto é que da parte de alguns estudantes foi evidente uma atitude bastante crítica em relação à historiografia moçambicana. Para os mesmos alunos, a história constitui uma ciência política que transmite uma versão oficiosa e que serve os interesses de um grupo dominante. Como referia um estudante de 22 anos de idade:

- “Agora temos que ter em conta que nessa altura, nós vivíamos num sistema de mono-partidarismo. Em que os professores tinham obrigatoriamente de falar sobre a história de Moçambique e tudo mais”.
- “Temos que ter em conta, que os livros foram feitos consoante os interesses do partido. Nós temos que ver que ensino foi feito no tempo do monopartidarismo. Então, a independência era mostrada, os feitos que a independência trouxe. Falaram um pouco mal do regime para tentar realçar a independência”.
- “Eu acho, que houve um trabalho muito bom, de comunicação de massas. Quer dizer, houve educação. Como uma manipulação. Em que as pessoas só vêm coisa boa e no entanto não conseguiram investigar e tentar ver as coisas mais… Um exemplo concreto: Fala-se de Urias Simango. Urias Simango era o vice-presidente da Frelimo. No entanto todo o mundo tem ideia de que ele foi um traidor. Como é possível um traidor chegar até à vice-presidência sem que antes vissem que… quer dizer, há uma certa manipulação em que as pessoas. Ou têm preguiça de ler, ou então não querem investigar”.

É também neste contexto de crítica à historiografia moçambicana que se podem compreender representações da história menos alinhadas com a versão oficial apreendida nos manuais da disciplina. Trata-se de estudantes que demonstram procurar conhecer a história de uma forma menos ideológica. Alguns alunos problematizaram os pressupostos políticos subjacentes à construção da história e, desta forma, se explica não só a dispersão dos resultados da amostra, como as representações contraditórias do passado colonial. Esta análise reproduz todo um conjunto de pontos de vista provenientes de uma camada social urbanizada e letrada, centrada na capital do país e não representativa da realidade moçambicana. Trata-se de uma população oriunda de grupos economicamente favorecidos (pelo menos por comparação com a sociedade moçambicana), com maiores expectativas de mobilidade social e com uma cultura política mais participativa. Qualquer tentativa de extrapolar estas observações para todo a sociedade moçambicana seria, por isso, abusiva.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Conhecimentos endógenos e a construção do futuro em África

Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto: "No século passado, sobretudo após a descolonização e tomando como referência essas espaços, começou-se a referir e a estudar o conhecimento "endógeno", "indígena", "subjugado", muitas vezes tão-somente designado "saber-fazer". Nos países mais desenvolvidos estas problemáticas eram sistematicamente ignoradas e apesar de Michael Polanyi ter teorizado em 1966 o conhecimento tácito, foi preciso esperar pelos anos noventa do século passado, para ele ser mais frequentemente reconhecido, apesar de pouco considerado pelos investigadores, gestores e políticos." Aqui.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Histeria colectiva



Confira aqui. Leia a minha série Os desmaios femininos na Quisse Mavota, aqui.
Adenda: leia documentos relacionados com fenómenos de histeria colectiva na Libéria em 2006, na Inglaterra também nesse ano e no México em 2007.
Adenda 3 às 6:42: sobre Quisse Mavota e Ndlavela em Moçambique, leia a série Quisse Mavota e Ndlavela: extractos de relatórios médicos preliminares, aqui.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

II Festival do Filme Etnográfico do Recife


O Festival Edição Anterior | I FFER - 2009II Festival do Filme Etnográfico

O II Festival do Filme Etnográfico do Recife tem por objetivo premiar produções cinematográficas/videográficas, produzidas a partir de 2008, que apresentem qualidade técnica reconhecida na área. Poderão ser inscritas produções nacionais e internacionais de documentários, que abordem questões socioculturais contemporâneas sobre pessoas, grupos sociais, processos históricos abordando temas de interesse antropológico. Serão premiados o melhor filme etnográfico e o melhor documentário. Haverá também uma premiação especial do juri popular.
Este festival é uma promoção dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e Comunicação Social da Unversidade Federal de Pernambuco.
E Para essa segunda edição do festival as instituições abaixo relacionadas estão presentes como co-promotoras:

Centre for Visual Antrhopology of Goldsmiths London University
Cineforum – Coontro - Sguardi Da Universidade de Perugia



Festival International du Film Ethnographique du Québec


Apoio Instituicional:

Associacão Brasileira de Antropologia
Grupo de Trabalho de antropologia Visual

domingo, 13 de junho de 2010

Rede de Pesquisa Comparativa

CODESRIA: "No âmbito das iniciativas que estão a ser levadas a cabo através dos seus novos programas, o Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África (CODESRIA), lança um apelo a propostas para a constituição de uma Rede de Pesquisa Comparativa (RPC) com o objectivo de realizar estudos sobre ou em torno dos temas que foram identificados como prioritários para o ciclo programático 2007-2011 do CODESRIA." Saiba dos temas, das regras, do prazo de execução e dos montantes alocáveis, aqui.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

XI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais

Salvador Bahia Brasil – 12 a 14 de Dezembro de 2010
A cidade de Salvador foi escolhida para abrigar, pela primeira vez, o Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, nos dias 12, 13 e 14 de Dezembro deste ano. O Evento, que está em sua décima primeira edição, tem como tema as “Diversidades e (Des)Igualdades”, que serão discutidos em 22 eixos temáticos. Durante os três dias de evento, especialistas em ciências sociais e humanidades de diversos países estarão reunidos para debater a diversidade e a complexidade de sociedades diferenciadas, nos mais variados aspectos, como é o caso dos países de língua portuguesa.
A programação acadêmica acontece no campus de Ondina da UFBA, e conta com a realização de eventos públicos e atividades culturais no centro histórico de Salvador. O XI Congresso Luso Afro Brasileiro está sendo organizado por um comitê composto de pesquisadores de todas as universidades públicas da Bahia, com a coordenação do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia.
A última edição do evento foi realizada na cidade de Braga, em Portugal, no ano de 2009, e reuniu cerca de dois mil participantes. Para esta edição, estima-se um público ainda maior.
Para maiores informações e inscrições:
http://www.conlab.ufba.br/

terça-feira, 8 de junho de 2010

Confira


Portal do CODESRIA em português, aqui. Amplie a imagem clicando sobre ela com o lado esquerdo do rato.

domingo, 6 de junho de 2010

História e prismas

"(Le Monde): Você contesta o relato do tráfico negreiro no sentido da pura pilhagem de Africanos pelos Brancos. Por quê?
(Ibrahima Thioub): A visão "cromática" de África conduz a uma imagem falsa da escravatura. O tráfico não se limitou à venda de Negros aos Brancos nos portos africanos. Ela engloba a maneira pela qual os escravos eram "produzidos" no interior do continente e encaminhados para a costa. Este sistema atlântico era uma organização global, que metia em relação, num parceria assimétrica mas interessada, as companhias europeias e as elites africanas. Estas utilizavam o tráfico para redefinir as relações de poder no continente."
Extracto de uma entrevista dada ao "Le Monde" pelo historiador senegalês Ibrahima Thioub, especialista do tráfico negreiro, da escravatura e da descolonização. Se quiser traduzir, use este tradutor: Free Translation

sábado, 5 de junho de 2010

É Proibido Dar Comida ( Por Erasmo Ruiz)


É Proibido Dar Comida (Erasmo Ruiz-UECE)

As cidades estão "infestadas" de pedintes, crianças abandonadas e moradores de rua. Apesar dessa condição ultrajante, de serem animais vivendo em meio aos dejetos da sociedade, ainda são, pasmem, seres humanos. E como tal, são indivíduos que desfrutam do estatuto de pessoas, abarcados por uma instância jurídica e política chamada cidadania.
Muitos hão de convir que essa história de "cidadania" costuma funcionar relativamente bem em acordo com o limite do cartão de crédito. Gente despossuída, ou melhor, gente que possui precariamente os trapos que cobrem o corpo não são seres que possam ser contemplados por essa peça ficcional do E$tado Burguê$. Para eles, ultimamente (ou quem sabe sempre), tem restado as execuções sumárias embaixo de viadutos ou de serem "peças" pirotécnicas para o deleite sádico de delinquentes de classe média.
Mas, convenhamos. Moradores de rua são péssimos lembretes, atrapalham o comércio e ainda cometem a descortesia de evacuar e urinar nos espaços públicos enquanto os ditos cidadãos de respeito aumentam o fluxo do esgoto sem tratamento que poluí rios e mananciais. Realmente, abrir uma loja e encontrar na frente dela um monte de cocô deve ser uma experiência traumática.
Sendo assim, alguns mui dignos moradores do Bairro de Santa Cecília em São Paulo resolveram, de forma cívica e cidadã, atuar sobre o problema. Irão fazer uma ofensiva contra as ONGs que promovem distribuição de comida para essas massa de homens lixo que exercem seu direito de ir e vir pelas ruas do bairro. O objetivo é fazer com que na ausência de comida estes cidadãos plenos em direito e fome possam procurar outras paragens.
Tão importante decisão foi tomada por um autodenominado "Conselho de Segurança" integrado por moradores, comerciantes, polícia e representantes da Sub Prefeitura da Sé, Guarda Civil e Santa Casa de Misericórdia (digamos que o nome do hospital parece soar um tanto irônico).

O Egrégio Conselho irá mapear as ONGs e lanchonetes do bairro que ao invés de jogarem comida fora doam comida a pessoas que estão sem comer. Numa estratégia educativa, os responsáveis serão abordados um a um para que parem de doar comida. Caso a estratégia educacional não surta efeito, os cidadãos de bem notificarão a Vigilância Sanitária para que interdite os restaurantes e lanchonetes irregulares que continuam realizando ato tão hediondo quanto o de alimentar miseráveis. Um comerciante mais afoito já tomou a dianteira. Diz jogar desinfetante nas pessoas sempre que as encontra na frente do seu produtivo estabelecimento.
Com medo que seu maravilhoso e tradicional bairro se transforme em antro de moradores de rua, cidadãos plenos de direitos, patriotas, cristãos e pagadores de impostos buscam uma saída prática e radical: livrar-se do "lixo" humano que se alimenta de sobras que deveriam se transformar em lixo. Seres humanos que moram nas ruas e que, em tese, estariam sem perspectiva de vida a não ser viverem na rua, são brindados por uma ação sem perspectiva a não ser aquela perspectiva típica das soluções fascistas que lidam com qualquer ruído como algo a ser extirpado. Essa gente sem comida, banho e trabalho deve ser retirada dali e caberá a outros cidadãos usarem da mesma solução no dia em que esses homens lixo se mudarem para novos locais.
Fica a pergunta no ar. Quando alguém terá a brilhante idéia de criar um campo de concentração para colocar esse povo que tanto incomoda? Bastaria arrumar um lugar bem longe, de preferência o subúrbio do subúrbio do subúrbio, cercar tudo com arame farpado eletrificado, fazer uma cota para pagar os vigilantes da guarita e instituir a pena de morte para quem resolvesse fugir de tão hospitaleiro abrigo. Engana-se quem achava que a Faixa de Gaza fica apenas no oriente médio. A diferença é que somos mais "sutis" em nossos bloqueios econômicos. Contra esses terroristas de merda, urina e mal cheiro, AS ARMAS DA FOME!

47 anos, Psicólogo e Professor da Universidade Estadual do Ceará

terça-feira, 1 de junho de 2010

BBC. Welcome to Lagos. Ep 1 [part 1/6]

Lagos constitui uma cidade com cerca de 10 milhões de habitantes e uma das maiores do Mundo em termos de crescimento demográfico. Como muitas outras metrópoles, os problemas de habitação, de transporte ou ambientais são uma realidade. Na cidade são produzidas cerca de 3000 toneladas de lixo por dia. A vida na principal lixeira é dinâmica e o negócio de aproveitamento do lixo absorve cerca de 5000 pessoas, que entre os despejos recolhem ferro, plástico, borracha, bronze, alumínio, baterias ou recipientes de perfume para posterior revenda. A maioria destas pessoas reside na lixeira onde construíram a sua própria cidade, com lojas, restaurantes, bares, barbearias, três cinemas e, inclusive, uma mesquita. Trata-se de uma cidade dentro da própria lixeira, dentro da própria cidade. De acordo com o documentário da BBC "Welcome to Lagos", para a maioria das pessoas o Estado constitui uma realidade extremamente distante, inacessível e abstracta. Vídeo disponível aqui.