Num contexto de democratização do ensino e de proliferação de instituições universitárias, muitos jovens moçambicanos desenvolvem uma cultura mais participativa e informada relativamente às questões sócio-históricas do país. A partir da análise de 180 inquéritos por questionário aplicados a estudantes do ensino superior em Maputo, bem como de um grupo de discussão que envolveu estudantes de uma universidade privada na capital do país, este texto tem como objectivo analisar as representações da história de Moçambique por parte desses actores sociais. Apresenta-se um breve excerto da conclusão:
Ao longo do grupo de discussão constatou-se a existência de uma representação predominantemente negativa do passado colonial, associada sobretudo à resistência dos africanos à presença estrangeira ou à exploração da mão-de-obra africana e dos recursos económicos de Moçambique. Os aspectos positivos associados ao período colonial relacionaram-se sobretudo com questões sócio-económicas – como a construção de infra-estruturas sócio-económicas ou de sistemas de saúde e de educação – e foram normalmente referidos não tanto (ou não só) como um elogio do passado, mas como uma crítica ao presente. De qualquer das formas, qualquer conclusão sobre estes dados deverá ter em consideração um conjunto de três aspectos: o manifesto desinteresse dos alunos pela história de Moçambique, a atitude crítica evidenciada em relação à historiografia, neste caso a moçambicana e, por fim, as características da amostra em análise.
Ainda que uma aluna tenha destacado que muitos moçambicanos “gostam de história, estudam história e até formam-se em história” e que inclusivamente “tem universidades que formam agora professores em história”, a verdade é que a maioria dos estudantes que participaram no grupo de discussão revelaram existir um forte desconhecimento por parte dos mais jovens em relação à história de Moçambique. Esse desconhecimento é explicado pelas carências que se evidenciam em Moçambique ao nível do ensino da história, sobretudo nas escolas públicas, e pelo desinteresse dos mais jovens relativamente a assuntos do passado:
- “Para nós, aquilo é uma época que já tinha acontecido. A história mudou. Fica para os mais velhos. Eu sei, tinha que saber as datas e essas coisas, porque era uma coisa que estudava na escola. Mas depois, eu estava nem aí. A história já passou. Já aconteceu [risos]. Vamos ver o que está a acontecer agora” (aluna de 21 anos);
- “Porque a gente estuda exactamente isso. Isso eu diria porquê? Talvez seria falta de atenção. Porque mesmo agora ela disse, ali é mais para a gente estudarmos. O que nos preocupa é que não tem nada a ver. Aquilo é uma história que aconteceu. Não temos mesmo nada a ver. Quando que…” (aluna de 22 anos);
- “Eu acho que é falta de interesse… dos jovens. A história… quando nós aprendemos a história, não é? Começámos a aprender no ensino secundário. Posso apostar que o que a gente aprendeu, da história, há uns que aprenderam mais que outros. Por exemplo, as escolas privadas têm mais atenção do que as escolas do Estado. Eu estudei numa escola do Estado… e havia muito professores lá que tinham falta de atenção. Eles… pouco falam, acerca da história. Não têm muito interesse… em dar as aulas como deviam dar, se for a ver, a maneira como dá na escola do Estado e a maneira como dá na escola privada é diferente” (aluna de 22 anos).
Estes testemunhos, de aparente vazio informativo, contêm um significado sociológico que importa analisar. Os problemas que assolam os jovens são hoje diferentes. Nas décadas de 1970 e 1980, as preocupações centrais do projecto do partido Frelimo, que terá de início envolvido as populações, relacionavam-se com o desmantelamento das estruturas de poder colonial, com a luta contra o apartheid e com a criação de melhores condições de vida para todos os moçambicanos. Se a independência política está garantida, o país enfrenta hoje novos problemas, relacionados essencialmente com os fenómenos de pobreza e de agravamento das desigualdades sociais. Confrontados com uma sociedade mais orientada para o materialismo e para o lazer, muitos jovens enfrentam hoje novos problemas, relacionados com o emprego, com a habitação, com o transporte ou com o consumo em geral. A proximidade física em relação a focos de riqueza e de consumo e a expectativa de acesso estimula, nas novas gerações, outros valores e necessidades. Trinta e cinco anos após a independência de Moçambique estes entrevistados enfrentam novos desafios, como a inserção e o aumento da competição no mercado de trabalho e de exigências escolares e profissionais. Por outro lado, estes jovens nasceram vários anos após a independência de Moçambique, pelo que não foram contemporâneos do regime colonial. Quando esta geração atingiu a adolescência, o regime monopartidário, envolvido em ideais marxistas-leninistas, tinha dado lugar a um outro, mais democrático e tolerante, relativamente aos costumes e aos comportamentos (políticos) dos cidadãos. Estes jovens estão, por isso, emocionalmente menos envolvidos com a história de Moçambique . A falta de conhecimentos de história e a sua desvalorização não significa necessariamente futilidade ou alienação , mas antes uma escolha pragmática e racional, estabelecida por novos actores sociais, num novo contexto. Para esta geração a independência constitui um dado adquirido. O mais importante prende-se com os problemas do presente e com as oportunidades que este lhes reserva.
Em segundo lugar, se como foi demonstrado a historiografia de Moçambique condiciona as atitudes dos mais jovens relativamente à história do seu país, um facto é que da parte de alguns estudantes foi evidente uma atitude bastante crítica em relação à historiografia moçambicana. Para os mesmos alunos, a história constitui uma ciência política que transmite uma versão oficiosa e que serve os interesses de um grupo dominante. Como referia um estudante de 22 anos de idade:
- “Agora temos que ter em conta que nessa altura, nós vivíamos num sistema de mono-partidarismo. Em que os professores tinham obrigatoriamente de falar sobre a história de Moçambique e tudo mais”.
- “Temos que ter em conta, que os livros foram feitos consoante os interesses do partido. Nós temos que ver que ensino foi feito no tempo do monopartidarismo. Então, a independência era mostrada, os feitos que a independência trouxe. Falaram um pouco mal do regime para tentar realçar a independência”.
- “Eu acho, que houve um trabalho muito bom, de comunicação de massas. Quer dizer, houve educação. Como uma manipulação. Em que as pessoas só vêm coisa boa e no entanto não conseguiram investigar e tentar ver as coisas mais… Um exemplo concreto: Fala-se de Urias Simango. Urias Simango era o vice-presidente da Frelimo. No entanto todo o mundo tem ideia de que ele foi um traidor. Como é possível um traidor chegar até à vice-presidência sem que antes vissem que… quer dizer, há uma certa manipulação em que as pessoas. Ou têm preguiça de ler, ou então não querem investigar”.
É também neste contexto de crítica à historiografia moçambicana que se podem compreender representações da história menos alinhadas com a versão oficial apreendida nos manuais da disciplina. Trata-se de estudantes que demonstram procurar conhecer a história de uma forma menos ideológica. Alguns alunos problematizaram os pressupostos políticos subjacentes à construção da história e, desta forma, se explica não só a dispersão dos resultados da amostra, como as representações contraditórias do passado colonial. Esta análise reproduz todo um conjunto de pontos de vista provenientes de uma camada social urbanizada e letrada, centrada na capital do país e não representativa da realidade moçambicana. Trata-se de uma população oriunda de grupos economicamente favorecidos (pelo menos por comparação com a sociedade moçambicana), com maiores expectativas de mobilidade social e com uma cultura política mais participativa. Qualquer tentativa de extrapolar estas observações para todo a sociedade moçambicana seria, por isso, abusiva.